O que é que você faz? – WIP

Alguém escreveu por aí: “Make your life your life’s work.”

Ok, tá bonito, mas pera um pouco. Será que eu sei o que é que eu faço?

Há pouco tempo, um amigo me chamou para conversar sobre posicionamento/portfolio de profissionais polivalentes em um mundo assíncrono. Ao invés de resolver o problema, fiquei com a proverbial pulga atrás da orelha. Ele me usou como exemplo (?!) *atenção crianças, não façam isso em casa* de alguém que consegue apresentar uma persona profissional polivalente (aliterações à parte).

Eu fiquei confuso.

Hoje eu anotei um parágrafo de uma notícia que estava lendo. “O professor Mário Henrique Simonsen ensinava que o problema mais difícil do mundo, caso seja bem formulado, um dia poderá ser resolvido. Já os problemas mal formulados, ainda que fáceis, são todos insolúveis.

Pensei em outro amigo que encontrei recentemente. O Gustavo Nogueira mergulhou num barril de Zeitgeist e ganhou super-poderes. Pensei que ele talvez tivesse melhores respostas e mandei uma mensagem, dizendo que ia mandar uma simples pergunta, mas cheguei à conclusão que nem sei realmente formular de verdade a minha dúvida, então resolvi cometer um textão. As próximas linhas são uma tentativa de formular o problema para então, depois, ter uma conversa sobre o tema com gente que sabe mais do que eu. Ou, utilizando as palavras de outro, “compartilhar a ignorância para alcançar a sabedoria.”

Se você está lendo isso aqui e tiver alguma opinião, alguma sugestão, alguma luz, por favor, compartilhe com a gente. Continuamos construindo um avião em pleno voo.

Eu sou bom nisso, eu sou um nissador profissional

Até certo tempo atrás, as pessoas tinham empregos, com definição de cargo e função. Ou seja, Fulano era contratado para ser Martelo, bater em pregos até eles entrarem na parede. Se você precisasse dum martelo, alguém iria indicar o Fulano, ou você iria numa Martelaria, e o Fulano seria o Martelo com o preço mais em conta para resolver os seus pregos.

Hoje em dia, e principalmente na nossa área da comunicação, somos profissionais líquidos. O Martelo também corta vidro e lixa paredes. Eu posso passar o dia inteiro sem escrever um anúncio (aliás, hoje em dia em agências de propaganda a publicidade é o assunto menos importante do trabalho). Era como o futebol de antigamente, que tinha basicamente 4 posições: goleiro, beque, meio-de-campo e centrefor.

Quando você está dentro de uma grande corporação, é fácil ser um martelo-que-lixa-paredes. Desde que esteja trabalhando no mínimo 8 horas por dia, vista a camisa da empresa e mantenha o seu perfil do LinkedIn atualizado (com depoimentos de ex-colegas sobre como você acaba com todos os pregos em tempo recorde e de maneira inovadora), você vai ter trabalho e ter uma carreira bem sucedida, até quem sabe virar Chief Martelo Officer.

Ou então largar a gravata e virar um nissador freelancer

Designer que só faz interfaces? Sim, existe. Médico que só opera coração? Também, em praticamente todos os hospitais da cidade. Programador em Swift. Há. Advogado especializado em defender político corrupto? Tem gente com essa frase no cartão de visitas.

Existem mil maneiras do profissional nômade encontrar trabalho, se for um nissador, um Martelo. Fiverr, Upwork, LinkedIn, todas essas redes que servem para encontrar aquela peça específica para a sua máquina corporativa. Qualquer atividade simples é fácil de ser sintetizada. Redator de SEO. Redator de healthcare. Escritor de monografias. Redator de powerpoint. Jornalista. Ghostwriter de livro de auto-ajuda. Redator de publicidade fantasma que ganha prêmio em Cannes. É tudo escritor, mas cada um martela um prego diferente.

Qualquer estudante de publicidade sabe que o processo de venda passa, inicialmente, pela definição de uma USP. Uma proposição única de venda. Lava mais branco. O mais rápido da categoria. Think different.

Se você faz oito coisas diferentes, ou não sabe explicar exatamente o que sabe fazer, cadê USP?Quando um profissional conecta um monte de ferramentas, mas não faz uma coisa só, o que ele faz?

Indefinição define.

O time de futebol Barcelona agora tem um problema imenso: vai perder o Iniesta. Don Andrés tem um dos perfis futebolísticos mais difíceis de encontrar, e que mais falta fazem ao time. Ele é o responsável por montar a jogada. O jogo de futebol tem duas camadas: os jogadores se posicionam ao redor da bola, mas alguns jogadores são capazes de decidir onde posicionar a bola dentro do campo. Ele joga futebol 3D, calculando o posicionamento de todos os martelos do time: o que corre, o que chuta e o que defende. Definir estratégias, escolher ferramentas (ou armas, ou técnicas) para resolver problemas é uma atividade dificílima de ser categorizada, nomeada, medida, quantificada. Inclusive, é uma posição, um tipo de jogador que nem era necessário há poucas décadas. Ele passa a bola para os outros, mas não é crucial na defesa, não corre mais que os laterais, não faz tantos gols assim (apesar de ter feito o gol mais importante da história do futebol espanhol). Iniesta teria dificuldades de jogar em um time montado por goleiro, beque, meio-de-campo e centrefor.

Ainda hoje, tem gente que acha que jogadores como Iniesta, Zidane ou Cruyff não batiam esse bolão todo. O importante é a quantidade de gols, as assistências, as defesas ou os dribles, ignorando o que estes jogadores faziam quando estavam sem a bola. Não conseguem ver o valor que eles acrescentam ao time. Zidane e Cruyff se tornaram treinadores. O primeiro ruma a ganhar três Champion Leagues seguidas. O segundo é responsável pela maior revolução conceitual de todos os tempos no futebol. Iniesta ainda pode se tornar um grande treinador.

Mas ainda assim, estes três sempre foram difíceis de categorizar.

O que acontece quando um profissional líquido resolve ser independente?

Aqui entra o grande conflito profissional que eu nem lembrava que tinha, mas que o Lisandro Gaertner me fez o favor de trazer à tona. Como um profissional que não é Martelo se vende? Como é que arranja clientes sem fazer parte de um conglomerado ou ser indicado por outros clientes? Aliás, como ser indicado, se nem ele nem os clientes sabem dizer a única coisa que ele faz?

Num mundo em que as pessoas trabalham remotamente, em times separados por oceanos, alternando equipes, em projetos fluidos, a conexão entre as peças pode ser fundamental. Na criação de videogames, temos uma figura extremamente interessante: o gamedesigner, uma pessoa responsável por fazer com que tudo encaixe, que o código converse com as imagens e a experiência do jogo seja interessante para os jogadores de uma maneira extremamente mercadológica. Equipes fluidas às vezes precisam de Iniestas que conectem o time à bola, coordenando a jogada até que alguém meta a bola dentro do gol.

O Lisandro Gaertner, naquela conversa comigo que originou este texto, me jogou uma série de questionamentos sobre a maneira como os novos profissionais se apresentam. O trabalho dele é ajudar a formular alguns tipos de problemas empresariais e solucioná-los utilizando algumas ferramentas nas quais ele é especialista, como gamedesign, storytelling, contar histórias, etc. Ou então coordenando várias ferramentas (e profissionais) para alcançar determinados objetivos. E ele tem um portfolio cheio de coisas interessantes.

Mas o que é que o Lisandro faz mesmo?

Se você ler a descrição do trabalho do Lisandro com pressa, pode chegar à conclusão que ele faz a mesma coisa que eu. Ou que não tem nada a ver. Ou que vários outros profissionais não-martelo. Ou ficar na dúvida sem saber exatamente o que ele faz.

Tenta explicar para uma criança de 5 anos. Tenta explicar o que você faz depois de 4 tequilas.

A descrição é genérica e vaga, porque ele não é um Martelo. Ele se adapta a cada trabalho, diagnosticando um problema e encontrando uma solução diferente e customizada para a situação. Ele não tem uma solução pré-fabricada para cada dilema profissional. Henry Ford provavelmente odiaria conversar com ele.

Explicar o trabalho de um diretor de arte para a avó é um problema tão anos 90.

Em Recife, na publicidade dos anos 2000, a solução para todo briefing era um comercial de 30” na Globo. Se não houvesse dinheiro, aí as pessoas pensavam em outra coisa. E mesmo assim tinha gente que achava difícil explicar o que fazia.

Como eu ainda não tenho resposta para este texto, resolvi jogar o problema no colo dos outros.

Como é que a gente explica o que a gente faz, se todo dia a gente faz uma coisa diferente?

Eu já fui redator, já fui um meio que redator/tradutor, brinquei com gamedesign, estudei umas paradas esquisitas de storytelling que eu nem sei dar nome (e olha que eu já fui pago pra dar nome às coisas), ando programando apps para iOS que geram poema, escrevo livros e besteiras que algumas pessoas gostam. Não sei se sou Martelo. Ainda não decidi qual nisso eu sou bom. Aquela coisa única que você faz melhor que todo mundo. Aquele diagrama de Venn que os japoneses chamam de Ikigai.

Este texto é, essencialmente, uma pergunta.

Então a gramática obriga a acabar com uma interrogação.

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