Eu não estou neste texto

Há algumas semanas, eu disse em tom jocoso à Piratinha:

“Vá ver se eu tô lá no teu quarto.”

Não era o típico “vá ver se tou lá na esquina,” era uma piada mesmo. Porém, com cinco anos, ela não captou a piada.

Também não captou a incoerência de que o pai dela não é capaz de estar em dois lugares ao mesmo tempo.

O pensamento mágico tão lindo que ela tem me surpreendeu. Seus passinhos saltitantes pelo corredor até o quarto, acendendo a luz e vendo que, inconceivable, eu não estava lá.

Ela voltou frustrada, e eu incrédulo perguntei:

“Será que agora eu tô?”

Ela virou-se, fazendo menção de ir novamente.

Tive que parar a brincadeira. Explicar que era uma brincadeira. Ela amuou. Eu fiquei triste porque tive que ser o adulto, o que explica a piada e esfumaça uma ilusão.

O mundo seria muito mais colorido, muito mais piratinha, se eu fosse capaz de estar em dois lugares. Ou de me mover tão rápido que pudesse chegar ao quarto dela voando pela janela da sala e entrando na janela do quarto. Um misto de teleporte com física não-euclideana.

Tive uma pequena chance de ver o mundo através da imaginação não-calcificada dos cinco anos, de alguém que ainda acredita nas coisas.

Principalmente as coisas encantadas.

Num tempo de hiperconexão, em que sabemos tanto sobre tanta coisa distante, a única coisa que viaja rápido é a tragédia. É a dor – de algo, de alguém, de todos nós – que acontece constante em várias partes do mundo e se espalha em impulsos elétricos para todo lugar.

Há pouquíssimos impulsos dedicados ao encantamento. Aparentemente, o cinismo venceu a magia, Sininho morreu, as novidades vieram dar à praia já atropeladas por uma lancha. 

Ser adulto no ano 2 da praga é ser bombardeado por impulsos desencantados.

É cada dia mais acreditar na descrença.