O gato que jogava xadrez

Eu ainda estou esperando a curiosidade matar o gato. O felino anda cada dia mais preguiçoso, porém extremamente dedicado à sua única atividade não relacionada a descansos: procurar um objeto brilhante e em movimento, de preferência com lasers.

Porque o felino adora ir à caça. A sensação de procurar algo que não sabe o que é, de repente sentir aquele leve tilintar dos sentidos, aquela variação de estímulo, aquela mudança no ambiente. E então, focado como só um felix, colocar-se em posição de ataque, contra o vento, contra os moinhos, contra os gigantes.

Na sua pequena mente caçadora, todas as sinapses se dedicam a preparar o bote, calcular todos os possíveis movimentos da presa, as reações a estes, e, num cálculo enxadrístico, saber exatamente o que fazer na hora de saltar.


Acho que o criativo mais feliz deve ser o cartunista: todo dia tem que fazer uma obra nova, e ela já nasce acabada. Se alguém não gostar, inclusive o próprio autor, não há problema, amanhã haverá outra. Se gostar, pode fazer uma continuação, uma sequência, uma variação. Pode tentar mudar completamente de estilo. Passar da comédia ao drama à abstração. Imagine o absurdo de dizer para a Laerte que você não gostou de um específico cartum. Ou ela própria deve gostar mais de alguns que de outros. Teria até dificuldade de lembrar de todos.

Por outro lado, um romancista que escreveu somente uma grande obra prima, dedicando meses, anos, décadas para plasmar a ideia em uma coisa, e de repente chegou à conclusão que nem gostava daquilo. Ou um diretor de cinema. A dificuldade e o trabalho para criar uma única obra soma-se à possibilidade de descobrir somente ao acabar que não era bem isso que você estava pensando, que era melhor ter ido ver o filme do Pelé.

Você pode até defender dizendo que a gente aprende fazendo, e que todo fazer é aprendizado. Mas às vezes, e para algumas atividades, o aprendizado só ensina a fazer o que estamos fazendo. “Xadrez é um ótimo jogo, que desenvolve o raciocínio para jogar xadrez,” já diria meu sábio pai.


Mas o gato, meu espírito animal criativo, é um mamífero doméstico e preguiçoso e, ao invés de saltar na hora definitiva, desencana e volta à almofada que está ao sol, quentinha. Porque sabe que tem comida fresca no potinho na cozinha, e que amanhã de manhã vai acordar o desgraçado do seu humano com uma cantilena digna de um Carlos Alexandre no toca-fitas de caminhão.

Desta forma, o gato não mata a curiosidade, mas também esta nunca o mata. Continuamos vivos porque a rotina existe.

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Este texto faz parte da blogagem coletiva Estação Blogagem, com o tema Tarô: cada semana de novembro será regido por um naipe que vai inspirar a produção dos textos. Para saber a programação e participar, leia esse texto aqui.